Janaína

Acervo pessoal.

Valmira (depois Janaína), negra,

colecionou involuntária preconceito

e assédios desde a infância.

Não muito amada pelos poucos familiares.

Autoestima em falta na prateleira.

Cresceu, resistiu, veio sorte, obedeceu com inteligência

às oportunidades boas. Os segundos namorados

lhe deram mais respeito e amor;

seu marido pontuou ainda melhor que eles.

Em resposta, ou encomenda, ela conseguiu revestir a

sensação de descartável com a habilidade de amar.

Se houve dependência emocional no trajeto,

é verossímil que as pedras nos rins não

tenham crescido mais que o cérebro.

Emprego bem-sucedido como atriz e cantora.

Aparecia nas mídias.

Sucesso de público basicamente.

Teve consolos materiais e sempre falou

em favor das pessoas negras, contra o racismo e a pobreza.

Um dia, morreu,

deitada sobre uma fileira alta de décadas,

ignorada pela mais recente crise de insônia da bolsa ou da Monsanto.

Acervo pessoal.

A parábola dos pés

Acervo pessoal.

a vida me passou a limpo

óbvio desautorizada

um mofo maroto embaixo da pele em nome do

aperto que tanta gente como eu digitaliza digitalizou

brindo aos meus passos quebradiços minha

insônia esperta impaciente dançando com a taça de vidro sobre o crânio

ou antes

sobre o cabelo envolvente e emaranhado

(“linhas emaranhadas são mais urgentes que se paralelas”, disse)

até que ela, a taça, caia e quebre e

vezes vezes é mesmo tão bonito viver ainda

(enquanto predadores variados se amarguram mais fácil

quando ou nem quando tudo se transforma em

merda ao menor toque)

vou chamar de destino

na falta de utensílio melhor

o motivo que me acolhe me atravessa

apontado pro meu corpo

os pés sobem e descem

sinuosa sobrevivência

homenageada por menos palavras senão

obrigada a mim

obrigada à turma

e obrigada

também

a ninguém

Foto da garota Alice, registrada e autorizada por sua mãe, Lara

Injustiça nunca mais

Na semana em que um terço da humanidade renova votos de esperança, de amor ao próximo e de justiça social, três eventos me tocaram fortemente. Trata-se de episódios distintos que guardam relação entre si por refletirem a dor maior da injustiça.

O primeiro foi o aniversário de 59 anos do golpe militar de 1964, cujos desdobramentos marcaram de maneira indelével toda a sociedade brasileira, temática que abordo no romance “O segredo da boneca russa”, inspirada no período sombrio que durou mais de duas décadas. Para alívio de milhões de brasileiros, as Forças Armadas proibiram neste ano celebrações festivas do golpe. Comemorar torturas, estupros e assassinatos de estudantes e ativistas políticos é desumano.

O segundo evento é de cortar o coração na semana sagrada dos cristãos: a retirada das barracas dos moradores de rua na cidade brasileira mais rica sem que houvesse uma solução efetiva para a situação indigna. Essas pessoas precisam de moradia de verdade, não de abrigo.

É revoltante que qualquer defesa que se faça aos mais vulneráveis seja rebatida de modo maldoso e debochado: “Pegue a sua casa e a divida com os pobres!”. Parece que o tempo não passou desde os primórdios da era cristã. 

Li estarrecida no perfil das redes sociais do Padre Júlio Lancellotti, 74 anos, um defensor obstinado dos excluídos, comentários do tipo: “Padre comunista, tá com pena, leva pra casa!”; “Abra as portas das igrejas pra esse pessoal dormir e pare de encher o saco”; “Militante esquerdopata”. Felizmente a maioria o apoia e se sensibiliza com a sua missão na Pastoral do Povo de Rua, em São Paulo.

O terceiro evento é de uma crueldade sem medida, porque envolve quatro criancinhas assassinadas a machadadas por um homem esculpido no ódio.

Diante desses relatos, como pensar em Feliz Páscoa? Se o grande líder espiritual de um terço da humanidade voltasse ao mundo, estou convicta de que seria visto pelas calçadas das metrópoles cuidando e defendendo os desprezados pela sociedade, lutando contra a tirania e espalhando o amor. Para renovarmos a esperança é necessário primeiro combatermos toda forma de desumanização e injustiça.

Ilustração compartilhada do perfil do artista espanhol @agustin.delatorre.zarazaga

@padrejulio.lancellotti

Minhas avós

Sou herdeira de mulheres que marcharam sobre solos trincados e silenciaram os próprios gritos.

Enquanto minhas avós pariam em casa o primeiro dos sete, oito filhos, milhares de contemporâneas do outro lado do planeta agrupavam-se em protestos contra as péssimas condições de trabalho nas fábricas, jornada diária superior a dezesseis horas, inclusive aos domingos.

Ambas de prenome Maria, minhas “privilegiadas” avós – pois brancas e possuidoras de algum torrão nesse mundo chamado Ceará – nasceram e viveram em vilarejos rurais. O cuidar rotineiro dos muitos filhos, do marido e da casa não era menos extenuante que o das operárias estadunidenses, alemãs e russas.

Minhas avós não foram à escola, mas assentaram filhos e filhas nas carteiras do grupo escolar da comunidade, tendo sido minha mãe a que voou mais alto: formou-se professora na capital para orgulho da família. Elegeu o lado profissional, retardando matrimônio e maternidade; casou-se aos 36, foi mãe aos 38 e repetiu a façanha aos quarenta.

As mudanças entre as gerações das minhas avós e da minha mãe podem ser atestadas desde o parto: minha irmã e eu viemos ao mundo em hospitais e um pediatra acompanhou o nosso crescimento. Nossa formação intelectual e autossuficiência eram prioridade para a nossa mãe, como se quisesse vingar toda a ancestralidade. Minha irmã graduou-se médica e eu pedagoga e jornalista.

No rastro do inconformismo, migrei temporariamente para outros países, abraçada aos filhos ainda crianças, onde espantei-me com manifestações de todo tipo. Uma delas, em um 8 de março, evocava a morte de mais de cem operárias nova-iorquinas após serem trancadas na fábrica e queimadas pelos patrões – com a cumplicidade das leis –, por reivindicarem melhores condições de trabalho.

Cerca de duas décadas mais tarde, minha peregrinação levou-me a outro março histórico. Eu me encontrava em Paris para o Salão do Livro, quando fui surpreendida por um protesto que rebatizava simbolicamente as ruas do centro da cidade com nomes de bravas mulheres que foram caladas por suas resistências e ativismos. Cartazes cobriam as placas originais que homenageiam predominantemente homens; em um deles lia-se o nome da vereadora brasileira Marielle Franco, assassinada aos 38 anos no Rio de Janeiro.

Mais de cem anos depois das primeiras manifestações feministas, novos conceitos sociais, culturais e biológicos vieram fortalecer a causa, mas os desafios persistem. Precisamos entender que o feminismo é uma bandeira coletiva. Nos crimes contra a mulher, o Brasil contabiliza diariamente quatro mortes por feminicídio e cerca de mil violações envolvendo violência doméstica, além de um estupro a cada dez minutos, conforme dados oficiais recentes.

Guardo profundo respeito aos meus vínculos femininos. Minhas avós manifestaram-se em sua época como puderam: cuidaram do seu chão e alimentaram seus filhos com comida e livros. Seus restos mortais repousam no mesmo solo em que marcharam amordaçadas e invisíveis. Minha mãe foi firme até o fim, apesar da perda trágica da sua amada filha que brilhou na medicina até ladrilhar a eternidade. Quanto a mim, bem, resisto aqui na peleja das minhas escrituras.

Neste Dia Internacional da Mulher, mil “Vivas!” às avós Maria, às mães Clélia e às irmãs Thereza, grandes exemplos feministas para todo o sempre, em todos os marços e nos outros meses também. Que a descendência siga louvando a todas elas.

*Crédito foto: YOAN VALAT / EFE – 08/03/2019

Promessa

Acervo pessoal.

Tem

poemas que preferem

gente que morava em

engarrafamentos,

dentro ou fora dos carros,

e resolveu fugir com

a própria nudez

mal disfarçada.

Outros

preferem personas mortas,

borra de memória,

os eleitos, por si mesmos

ou por outros espécimes livres,

daqueles que se

parecem com o

que certos livros

queriam ser, mas sequer conseguem.

Entre

estes e aquilos,

palavras e outras manchas,

a ponte encardida, opaca

(era invisível antigamente)

sempre encapada pelo

trânsito rumo a outros trilhos e encanamentos

e com acesso imediato

ao rio lá embaixo, ao ar ao lado:

isso promete, apesar da

meia voz humana em volta, que

os mundos vão manter o trato com ou sem nós.

Incivilizados

“Meu nome é Martim (…); meu sangue, o do grande povo que primeiro viu as terras de tua pátria.” (José de Alencar, em “Iracema”)

O meu primeiro contato com a nossa gente originária foi através da literatura. Era tempo de colégio, adolescência e leitura obrigatória dos clássicos locais.

Os livros didáticos de História continham informações reduzidas e estereotipadas sobre os povos indígenas, indiferentes às vivências de cada um. Em “Iracema”, do brilhante romancista cearense José de Alencar, eles tinham nome, voz, rosto e sentimentos.

A linguagem lírica da obra, contudo, não me encantou à época. Faltou-me maturidade, além de conhecimento prévio a respeito das diversas etnias, suas leis, verdades e costumes. Talvez um debate na escola quanto à importância e respeito à ancestralidade tivesse ajudado. Até então, os índios eram considerados seres exóticos e incivilizados.

Relembro esses fatos no momento em que uma crise humanitária sem precedentes se abate sobre o povo Yanomami e observo, com vergonha, tristeza e revolta, que preconceitos de séculos ainda perduram.

Nas redes sociais, leio estarrecida comentários desinformados, cruéis, debochados e insensíveis: “Índios fugindo da Venezuela para escapar aqui”; “Infância desamparada à base de mandioca, feijão, verduras e peixe”; “Pais indígenas não sabem mais caçar, pescar, plantar?”; “Os índios não querem mais plantar?”.

Se não podemos – ou não queremos – socorrê-los, tenhamos ao menos compaixão das crianças Yanomami esquálidas, com a idade de nossos filhos e netos bem-nutridos. E pressionemos para que a Justiça puna os principais responsáveis (porque somos todos) pelo que está sendo classificado de genocídio.

Iracema, a índia Tabajara que teve o infortúnio de se apaixonar pelo invasor branco europeu, ao atingir Martim com uma flecha quebrou a haste e entregou-lhe em sinal de paz.

Na citação que abre este texto, o próprio Martim admite ao pajé Araquém, pai de Iracema, que a pátria invadida pertence aos indígenas.

Já passou da hora de quebrarmos a flecha à maneira indígena e estabelecermos a paz. Os inimigos não são eles; os incivilizados somos nós.

Serenata pra Síria

Foto: acervo pessoal.

Por aqui, só cimento, asfalto e

pedras fabricadas em laboratório,

atravessadas por passos pouco perceptíveis

(a maioria dos olhares foi anexada,

de modo juridicamente perfeito,

às pedras de asfalto e cimento,

mas não aos próprios pés).

Se em torno de cinco pessoas tiverem dito,

há quinhentos anos ou menos,

que o sertão é uma ausência ou uma indecisão ou um bulir,

Síria vai se sentir satisfeita em escrever um poema confirmando o fato.

As folhagens, interdimensionais, os pelos, dentes, garras, as brechas minerais,

confinados na amnésia, cisco inerte de sabor do que já se engoliu.

Quase sempre tem gente por perto.

Uma época, tinha apenas um habitante nessa cidade,

faz muito tempo que isso aconteceu.

Ninguém tem essa oportunidade de amadurecimento,

e a maioria nem quer, nem entenderia essa chance.

Cidade superlotada de sol, ouvidos enferrujados e sorvetes desnutridos,

por onde Síria passa às vezes.

Síria, que é diferente de vc.

De qualquer modo, o “amor da vida de Siria [até agora]”

foi alguém que cumpriu o clichê de ir embora,

e sobrou nela uma sensação enxerida de ser hj

uma versão corrigida, de si mesma, que não foi publicada.

Um arquivo amassado por tempo indeterminado,

num local desconhecido da memória

(no mediastino, pra ser exato), secretamente satisfatório.

Desde então ela entendeu que nada tem explicação ou,

dizendo de outro modo, Síria é forte,

e isso a entedia ou irrita eventualmente.

Síria queria uma vida outra,

fora das fábulas de final feliz interminável

e da espera pelas vagas marcadas pelo destino,

essas piadas recauchutadas.

Não vá pensando que ela é infeliz;

ela sabe da desamarra sem pensar muito nisso,

mas, irreversivelmente, em algum momento, o mundo, pra ela, trocou de pele.

Uma pele diferente, invisível, princípio duma incerteza:

não dá pra dizer se áspera ou lisa.

Enquanto isso, o ex-médico,

atual esquizofrênico,

alertava, observando os transeuntes na escada se vestindo de moucos:

a história é um ato falho.

A vida não sabe de si mesma, não sabe de porra nenhuma.

Dentro do carrinho de mão refrigerado,

em órbita semiárida, os sorvetes mantêm a calma,

e ninguém desconfia se sonham

com o ácido que lhes cabe neste latifúndio,

mas as pessoas, sim, sonham sem parar.

Em claro-escuro com essa cena,

num momento daqueles em que

se embriagar com o boletim de ocorrência

era mais arriscado que com conhaque,

Síria sentiu algo tão forte quanto

a maneira de seu corpo ser apalpado por ondas, visíveis ou não,

é isso era um indício de que, como se diz em algum lugar, a foto ia deslizar no fato.

Triste com frequência (contingências do corpo),

Síria, naquela hora era sede e sono,

queria ali outro corpo, mesmo que ele por acaso faltasse,

escorrendo atrito, mastigando desapropriação,

trazendo uma simetria parecida com isto:

Um olho aberto e o outro piscando.

Os pais dela não sabiam que a Síria é um lugar,

ouviram a palavra alguma vez, e ela escolheu a menina.

Seu nome por isso não teve,

durante muitos anos, sentido nenhum, era um futuro puro,

antes do qual não existissem, faz de conta, estampidos da artilharia mais grosseira.

Síria não atravessou o atlântico sozinha;

ela cruzou o asfalto numa noite sem estrelas, nem lua,

com sua melhor roupa, seu melhor olhar,

sem roteiros que alguém soubesse.

Síria não sou eu, e em geral não é alguém em carne e osso por aí.

Mas há rumores de que muitas vezes ela é.

Síria mora num piso intermediário entre uma alucinação e o mundo,

um lugar maior que o mundo, fora de acesso pra mim.

Só existe, provavelmente, quando não estou pensando nela:

eu queria ser um fio do cabelo bom de ver que ela cria.

Ela nunca pensou em mim, nunca supôs minha existência:

ela não é uma pessoa, nem deusa,

mas é uma mulher ou o chamado por uma mulher em que possa se transformar,

tipo Eva na Bíblia.

Mas Síria não é tampouco Eva (nem mãe, nem filha),

e de qualquer modo o dia de agora ainda é

uma pedra ou uma folha quicando na impaciência dessa

cidade em cujos parques o verde amarelou.

Foto: acervo pessoal.

Zerar a vida

Com alegria e gratidão, comunico aos queridos e queridas que seguraram a minha mão nesses últimos anos, que eu zerei a vida neste início de 2023. Não é pouca coisa. Com que frequência se alcança algo que tanto se almeja? Aposto que raramente.

Optei por escrever um texto motivacional porque é de esperança que estamos famintos e sedentos após um longo período de perdas e “desmantelos” – termo copiado da minha saudosa mãe –, atrelado a um pacote de crises profundas: sanitária, educacional, cultural, ambiental, humanitária, econômica etc.

A exemplo da maioria, eu estava desnorteada e apavorada com o ressurgimento do autoritarismo e de forças extremamente conservadoras que julgávamos banidas desde o século passado, embora estudiosos insistam que o monstro jamais é eliminado, ele apenas hiberna à espera do degelo da vigília.

Essa virada de ano foi muito significativa não só para nós, brasileiros, mas para todos os povos contemporâneos. Saudamos a retomada da democracia, da sensatez, do humanismo, do cuidado com os mais vulneráveis, os mais necessitados, os invisíveis, os excluídos, enfim, todos aqueles que os verdadeiros líderes – espirituais e políticos – acolhem desde que o mundo é mundo.

Na troca do calendário, meus olhos úmidos visualizaram os desvalidos de “Vidas Secas”, do gigante e eterno Graça, ascendendo suave e firmemente a rampa presidencial desenhada um dia por Niemeyer. Aquela imagem de homens e mulheres, mais a criança e a cadelinha, personagens reais que sabem que para lutar e vencer é preciso primeiro sobreviver, foi a representação mais intensa e emocionante já vista na minha longa existência. Orgulho da nossa gente que deu lição de cidadania para o mundo.

Sigamos vigilantes. Não nos deixemos corromper pela desinformação, só o jornalismo profissional, livre e independente pode combater as mentiras criminosamente plantadas nas redes sociais e que tanto enfraquecem a democracia e prejudicam os cidadãos. Junte-se o equilíbrio dos três Poderes políticos fortes e teremos criado o antídoto à tirania.

Acredito que o desejo coletivo para o novo ciclo é contribuir para um mundo menos desigual. Isso é zerar a vida.

O Stephen King colonial

Favor prestar

uma charmosa atenção

às linhas abaixo.

Em algum curto-circuito

a seguir, um ensinamento

valioso sobre coisas

impostas, e faz parte

do aprendizado que

se descubra isso sem ajuda,

como disse a mãe morta

a sua filha, que não a conheceu.

Falando em conhecer,

eu conheço um cara,

encontrável na vizinhança,

que age como escritor.

Escreve, ele escreve,

depois vaza na Internet.

Às vezes alguém elogia,

mas o máximo de progresso

nesse sentido é ouvir

que seu rosto se parece

com o do Stephen King.

Espero que meus textos

não sejam tão levinhos,

tão quarto de conforto,

tipo aquele terror

moderadinho e moralista

de tantos livros do meu sósia:

Eis a preocupação

do Stephen King colonial,

que às vezes também

pensa ou diz ou escreve,

com o olhar escorregando pelo ar:

Voem, meus amigos, voem.

Voem alto, a brisa não pode

nem quer atrasar vocês.

Meus amigos que nunca

cogitaram minha existência

ou quem sabe me saibam,

no máximo,

como um setor da mancha longe.

Voem alto e caguem

nas distintas cabeças

aqui embaixo, 

eu ou alguém lhes suplico ou suplica.

E Stephen continua

seu novo best-seller:

Eu vi um cururu atrevido,

atravessando o asfalto,

saltando perpendicular,

enquanto eu caminhava

pela calçada,

como qualquer idiota.

Passei rápido e pedi q alguém,

Deus ou o Diabo ou

gente invisível ou a morte

ou o vento ou sei lá

o ajudasse a não ser esmagado

pela mira dos pneus por vir.

Pensei em chutá-lo suavemente

para o canto da rodovia,

mas não fiz isso por medo

de que ele se irritasse

e sujasse de merda

meu tênis recém-lambido

por um pano molhado.

Continuei meu caminho

e pensei tbm:

preciso confiar no sapo cururu.

Ele há de ficar bem.

Ele vai saber se cuidar.

Talvez ele tenha pensado

a mesma coisa sobre mim,

se é que perdeu

algum caco de segundo

com isso. Talvez eu

nunca mais veja

esse novo melhor amigo.

Nisso não tem tristeza,

nem indiferença,

mas aquela a alegria

que a gente sente quando

sofre da doença

em q acha que está

sozinho no mundo

durante 90% do tempo;

não é pra tanto, né?

Essa doença é

só mais um deboche

nesse mundo de arredores,

em que frangos de quintal

caminham à noite

pelo centro da cidade deserto.

Jogar as roupas fora,

morar nos galhos de uma árvore alta,

voltar pro estado selvagem,

isso não vale uma gaiola

e é inútil simplesmente;

a moral da história é que

a mão invisível e sem alça

mata mais que a ira da mata

e cumpre expediente contínuo

contra a árvore, a montanha,

o texugo do mel e por aí vai.

Isso costuma passar ignorado,

bem como o seguinte fato:

Ainda não compuseram nenhuma

canção chamada Coração colonizado,

mas quem pensar nesse título

vai sentir uma certeza,

não muito além de quem a sente,

de que essa música já existe,

e nisso haverá um microssusto,

colorido por detrás da parede,

sorrindo com frequência de

enésimos herz,

microssusto que vai

sobreviver a nós. Nós quem?

Não importa, nós, apenas,

esse pacote de assustados

que mijam no canto de parede

diante do prédio alto,

varandas residenciais

com luzes arregaladas por plateia,

onde mora a mãe amorosa

de classe média,

superpoder de preço inflacionado

nessa terra plana, plena de poliéster,

mundo que diz pra si mesmo:

Puto de mim que não pari ninguém,

mesmo que achem que eu pari,

palavras ditas enquanto

o demônio do coração de mármore

se despedia cumprimentando a todos.

E se alguém descobrir

como sonegar impostos

em segurança se vc for pobre,

favor vir aqui nos ensinar,

pra que essa conversa se devolva

aonde ela ainda não chegou.

Enfim, é provavelmente

desnecessário desejar

que a próxima noite seja

uma quase-estátua,

silenciosa e escura,

como água de fossa. Amém.