Injustiça nunca mais

Na semana em que um terço da humanidade renova votos de esperança, de amor ao próximo e de justiça social, três eventos me tocaram fortemente. Trata-se de episódios distintos que guardam relação entre si por refletirem a dor maior da injustiça.

O primeiro foi o aniversário de 59 anos do golpe militar de 1964, cujos desdobramentos marcaram de maneira indelével toda a sociedade brasileira, temática que abordo no romance “O segredo da boneca russa”, inspirada no período sombrio que durou mais de duas décadas. Para alívio de milhões de brasileiros, as Forças Armadas proibiram neste ano celebrações festivas do golpe. Comemorar torturas, estupros e assassinatos de estudantes e ativistas políticos é desumano.

O segundo evento é de cortar o coração na semana sagrada dos cristãos: a retirada das barracas dos moradores de rua na cidade brasileira mais rica sem que houvesse uma solução efetiva para a situação indigna. Essas pessoas precisam de moradia de verdade, não de abrigo.

É revoltante que qualquer defesa que se faça aos mais vulneráveis seja rebatida de modo maldoso e debochado: “Pegue a sua casa e a divida com os pobres!”. Parece que o tempo não passou desde os primórdios da era cristã. 

Li estarrecida no perfil das redes sociais do Padre Júlio Lancellotti, 74 anos, um defensor obstinado dos excluídos, comentários do tipo: “Padre comunista, tá com pena, leva pra casa!”; “Abra as portas das igrejas pra esse pessoal dormir e pare de encher o saco”; “Militante esquerdopata”. Felizmente a maioria o apoia e se sensibiliza com a sua missão na Pastoral do Povo de Rua, em São Paulo.

O terceiro evento é de uma crueldade sem medida, porque envolve quatro criancinhas assassinadas a machadadas por um homem esculpido no ódio.

Diante desses relatos, como pensar em Feliz Páscoa? Se o grande líder espiritual de um terço da humanidade voltasse ao mundo, estou convicta de que seria visto pelas calçadas das metrópoles cuidando e defendendo os desprezados pela sociedade, lutando contra a tirania e espalhando o amor. Para renovarmos a esperança é necessário primeiro combatermos toda forma de desumanização e injustiça.

Ilustração compartilhada do perfil do artista espanhol @agustin.delatorre.zarazaga

@padrejulio.lancellotti

Minhas avós

Sou herdeira de mulheres que marcharam sobre solos trincados e silenciaram os próprios gritos.

Enquanto minhas avós pariam em casa o primeiro dos sete, oito filhos, milhares de contemporâneas do outro lado do planeta agrupavam-se em protestos contra as péssimas condições de trabalho nas fábricas, jornada diária superior a dezesseis horas, inclusive aos domingos.

Ambas de prenome Maria, minhas “privilegiadas” avós – pois brancas e possuidoras de algum torrão nesse mundo chamado Ceará – nasceram e viveram em vilarejos rurais. O cuidar rotineiro dos muitos filhos, do marido e da casa não era menos extenuante que o das operárias estadunidenses, alemãs e russas.

Minhas avós não foram à escola, mas assentaram filhos e filhas nas carteiras do grupo escolar da comunidade, tendo sido minha mãe a que voou mais alto: formou-se professora na capital para orgulho da família. Elegeu o lado profissional, retardando matrimônio e maternidade; casou-se aos 36, foi mãe aos 38 e repetiu a façanha aos quarenta.

As mudanças entre as gerações das minhas avós e da minha mãe podem ser atestadas desde o parto: minha irmã e eu viemos ao mundo em hospitais e um pediatra acompanhou o nosso crescimento. Nossa formação intelectual e autossuficiência eram prioridade para a nossa mãe, como se quisesse vingar toda a ancestralidade. Minha irmã graduou-se médica e eu pedagoga e jornalista.

No rastro do inconformismo, migrei temporariamente para outros países, abraçada aos filhos ainda crianças, onde espantei-me com manifestações de todo tipo. Uma delas, em um 8 de março, evocava a morte de mais de cem operárias nova-iorquinas após serem trancadas na fábrica e queimadas pelos patrões – com a cumplicidade das leis –, por reivindicarem melhores condições de trabalho.

Cerca de duas décadas mais tarde, minha peregrinação levou-me a outro março histórico. Eu me encontrava em Paris para o Salão do Livro, quando fui surpreendida por um protesto que rebatizava simbolicamente as ruas do centro da cidade com nomes de bravas mulheres que foram caladas por suas resistências e ativismos. Cartazes cobriam as placas originais que homenageiam predominantemente homens; em um deles lia-se o nome da vereadora brasileira Marielle Franco, assassinada aos 38 anos no Rio de Janeiro.

Mais de cem anos depois das primeiras manifestações feministas, novos conceitos sociais, culturais e biológicos vieram fortalecer a causa, mas os desafios persistem. Precisamos entender que o feminismo é uma bandeira coletiva. Nos crimes contra a mulher, o Brasil contabiliza diariamente quatro mortes por feminicídio e cerca de mil violações envolvendo violência doméstica, além de um estupro a cada dez minutos, conforme dados oficiais recentes.

Guardo profundo respeito aos meus vínculos femininos. Minhas avós manifestaram-se em sua época como puderam: cuidaram do seu chão e alimentaram seus filhos com comida e livros. Seus restos mortais repousam no mesmo solo em que marcharam amordaçadas e invisíveis. Minha mãe foi firme até o fim, apesar da perda trágica da sua amada filha que brilhou na medicina até ladrilhar a eternidade. Quanto a mim, bem, resisto aqui na peleja das minhas escrituras.

Neste Dia Internacional da Mulher, mil “Vivas!” às avós Maria, às mães Clélia e às irmãs Thereza, grandes exemplos feministas para todo o sempre, em todos os marços e nos outros meses também. Que a descendência siga louvando a todas elas.

*Crédito foto: YOAN VALAT / EFE – 08/03/2019

Incivilizados

“Meu nome é Martim (…); meu sangue, o do grande povo que primeiro viu as terras de tua pátria.” (José de Alencar, em “Iracema”)

O meu primeiro contato com a nossa gente originária foi através da literatura. Era tempo de colégio, adolescência e leitura obrigatória dos clássicos locais.

Os livros didáticos de História continham informações reduzidas e estereotipadas sobre os povos indígenas, indiferentes às vivências de cada um. Em “Iracema”, do brilhante romancista cearense José de Alencar, eles tinham nome, voz, rosto e sentimentos.

A linguagem lírica da obra, contudo, não me encantou à época. Faltou-me maturidade, além de conhecimento prévio a respeito das diversas etnias, suas leis, verdades e costumes. Talvez um debate na escola quanto à importância e respeito à ancestralidade tivesse ajudado. Até então, os índios eram considerados seres exóticos e incivilizados.

Relembro esses fatos no momento em que uma crise humanitária sem precedentes se abate sobre o povo Yanomami e observo, com vergonha, tristeza e revolta, que preconceitos de séculos ainda perduram.

Nas redes sociais, leio estarrecida comentários desinformados, cruéis, debochados e insensíveis: “Índios fugindo da Venezuela para escapar aqui”; “Infância desamparada à base de mandioca, feijão, verduras e peixe”; “Pais indígenas não sabem mais caçar, pescar, plantar?”; “Os índios não querem mais plantar?”.

Se não podemos – ou não queremos – socorrê-los, tenhamos ao menos compaixão das crianças Yanomami esquálidas, com a idade de nossos filhos e netos bem-nutridos. E pressionemos para que a Justiça puna os principais responsáveis (porque somos todos) pelo que está sendo classificado de genocídio.

Iracema, a índia Tabajara que teve o infortúnio de se apaixonar pelo invasor branco europeu, ao atingir Martim com uma flecha quebrou a haste e entregou-lhe em sinal de paz.

Na citação que abre este texto, o próprio Martim admite ao pajé Araquém, pai de Iracema, que a pátria invadida pertence aos indígenas.

Já passou da hora de quebrarmos a flecha à maneira indígena e estabelecermos a paz. Os inimigos não são eles; os incivilizados somos nós.

O quinto filho

Acabo de parir mais um filho, o quinto em uma década.

Batizei-o de Bodum.

Referir-se a livros como filhos é uma analogia frequente e um exercício abundante de afeto e entrega.

A gente planeja a gestação, enfrenta suas dores e delícias, até segurar o rebento junto ao peito, sem entender ainda direito como o concebeu. Confere se está tudo no lugar, orelhinhas, carinha, corpinho. Descobre algumas imperfeições que não impedem de amá-lo do mesmo jeito.

No começo, eles grudam debaixo das nossas asas, a pedirem colo; depois voam sozinhos, ganham o mundo, deixam de ser nossos, sinal de que cumprimos a missão direitinho.

A única diferença é que a gestação literária, ao contrário da biológica, não tem duração certa, pode levar de poucos meses a alguns anos. Após o nascimento, contudo, reagem de forma semelhante: dão trabalho, alegria e preocupação.

Há um ano e meio dou vida e voz a duas personagens nordestinas – Bia e Gia – nascidas no interior e descendentes dos povos originários brasileiros.

Bia e Gia se conhecem em uma das capitais da região e se tornam grandes amigas. Após algum tempo, Bia migra para o Sudeste em busca de novas oportunidades. As jovens perdem totalmente o contato. Anos mais tarde, Gia, que permanecera no Nordeste, tem um presságio sobre a morte trágica da amiga. Ela retorna, pela primeira vez, ao interior para tentar descobrir alguma pista do paradeiro da amiga, em uma viagem que representará o resgate das suas próprias raízes.

Para gestar Bodum, inspirei-me nos consagrados romances realistas regionais do século vinte e na contação de histórias da minha mãe e do meu pai sobre sua infância e juventude longe da urbanidade.

O “chá de apresentação” do meu bebê será neste novembro, na Bienal Internacional do Livro do Ceará, no Centro de Eventos, em Fortaleza, em data a ser brevemente confirmada pela Editora Sete. Aguardo todos e todas.

Seja muito bem-vindo, filhote! Que você possa trazer alguma luz para a gente sofrida e invisibilizada do Nordeste.

Capa: Geraldo Jesuino

Dois anos de artevismo

Bem no comecinho da pandemia que ainda nos assombra, recebi um convite para abraçar um Lugar que respira cultura, afeto, arte, talento e coragem.

À época, minha família – como tantas – passava por uma tempestade que culminou na perda da minha única irmã para a Covid-19, o que me levou a adiar o “Sim”.

Meses mais tarde, em ato de resistência, publiquei o primeiro texto mensal. Hoje trago o vigésimo quarto, uma comprovação de que vida é energia e partilha.

Nesses dois anos, dividi com queridos leitores e leitoras minhas angústias e regalos. Tento provocar alguma reflexão e alertar para a importância de aprender a lidar com o sofrimento. A temática varia conforme o momento: ora triste, inconformada e revoltada; Ora alegre, resignada e paciente.

Já escrevi sobre as pequenas inutilidades que nos sustentam; Que devemos encarar os desafios com seriedade; Da obrigação de respeitar pensamentos divergentes; De recomeçar, apesar dos infortúnios; Sonhar o impossível; O direito de manter a casa em desordem; Que a luta feminista gera um mundo mais justo; De cuidar de quem padece; Não negar a própria dor, mas sim evoluir a partir dela; Valentia para desistir do que não faz mais sentido; Participar de algo que beneficie a coletividade; Entregar-se a memórias leves quando o presente estiver muito pesado; Julgar menos é sinal de maturidade; Insistir na esperança ativa; Aproveitar as boas surpresas; Priorizar-se nem sempre é egoísmo, é preciso fortalecer-se para amparar o outro; Praticar o desapego faz um bem enorme, uno e plural; Esperançar de novo e sempre porque o dia mais potente – e feliz – ainda virá; Inspirar-se na força do amor; Aceitar o envelhecimento é florescer; Do perigo de conviver apenas entre iguais; E que as mudanças são necessárias e inevitáveis.

Renovo hoje votos de amizade e gratidão com o nosso ArteVistas pela oportunidade de falar livremente acerca das minhas próprias vivências, e torço que elas possam ser úteis a alguém.

Ainda há caquinhos espalhados, o mosaico não está completo e nem sei se estará um dia. De certeza mesmo, só o desejo de seguir, de cultivar o riso e o convívio.

Meu tempo é agora

Junho mal acabou e já estou com saudade das quadrilhas, milho assado, canjica e pé de moleque.

Saudosa, não saudosista! Cultivo o desapego ao ontem. Prefiro o mundo contemporâneo, com suas modernas ferramentas tecnológicas e avanços científicos que nos facilitam a vida, curam doenças graves e chacoalham convicções.

Por outro lado, semeio memórias de risos, afetos, objetos, lugares e sabores, enquanto acolho os costumes ancestrais com seu linguajar e manifestações próprias, sem rejeitar as inevitáveis mutações.

As quadrilhas juninas são unanimidade como tradição a ser mantida, embora muitos torçam o nariz conservador para as recentes variações. E se eu disser que essa dança, como tudo na vida, está em constante evolução? A quadrilha da nossa saudosa infância era uma releitura da releitura, capaz de fazer eriçar os fios brancos das cabeleiras postiças dos fidalgos europeus de três séculos atrás.

Importamos uma dança aristocrática francesa para os salões monárquicos brasileiros que, na sequência, espalhou-se para a zona da mata, agreste e sertão nordestinos, associada à colheita e aos santos católicos de junho. Uma transformação que prossegue porque cultura é como linguagem, algo vivo que acompanha as mudanças sociais. Uma comprovação prática? Ninguém mais fala “vossa mercê”. Nem a nobreza masculina europeia usa mais peruca branca com cachos.

Temos, obviamente, que zelar os hábitos locais e a norma culta da linguagem quando a esfera e o contexto assim exigirem. Nas redes e mídias sociais, destino deste escrito, posso [e devo] espalhar pitadas de descontração. Nos aplicativos de mensagens instantâneas – como “Whatsapp” ou “zap” –, as abreviações e “emojis” dão o tom. No Jornalismo, minha área, utilizamos linguagem mais formal. Enfim, expressar-se com maior ou menor (in)formalidade vai depender do suporte, do meio e da profissão.

Adaptamos o figurino da “quadrille” original e renomeamos os movimentos “En avant tous!” | “En arrière!” para “Anavantu!” | “Anarriê!”, somados aos regionais “Olha a cobra!”, “Olha a chuva!”, “Caminho da roça!”, e outros abalos que ainda virão.

Vivam as mudanças! Um “Salve!” à cultura popular.

Liberdade ou ofensa?

É maravilhoso conviver apenas entre pensamentos iguais, não é?

Não, não é. É perigoso, abusivo e pode desabar para o totalitarismo, que fere de morte democracias e liberdades.

Perdi a conta das vezes em que cogitei me afastar dos contrários, felizmente recuei a tempo. Onde ficaria a verdadeira igualdade, sem distinções ou privilégios, que tanto defendo?

A vivência nos universos cultural e jornalístico alargou meus horizontes, trouxe-me novos afetos, debates calorosos, porém educados. Preparou-me, enfim, para trafegar por várias esferas.

Reconheço-me nas pessoas religiosas, embora a minha espiritualidade não se encaixe em uma prática institucional específica. Identifico-me também com aquelas que se definem conservadoras, a despeito da minha mente progressista. Aceitação mútua, diga-se. A única coisa inaceitável é a afronta à democracia, pelos altos danos coletivos. Como isso termina, todos sabemos, basta abrir os livros de História.

Muito fácil detectar o risco. Nos regimes autoritários, o primeiro pilar golpeado é a imprensa que apura e divulga denúncias de atos não republicanos de governantes. Desacreditar a imprensa é pena capital para as democracias. A sociedade tem o direito de saber o que acontece nos bastidores do poder e nós, jornalistas, temos o dever de informar.

Como cidadãos civilizados, é preciso reconhecer as fronteiras da livre expressão. Há uma faixa movediça entre o direito legítimo de se expressar e o ataque à honra de alguém. Somos livres para manifestar a nossa opinião, todavia se o fizermos de maneira violenta ou difamatória, estaremos cometendo um crime e responderemos por isso na justiça. Fora disso é o caos.

Democracias suportam diversidade. Não há o que temer. E quem for “cancelado” por expor respeitosamente seus pontos de vista, deve agradecer aos céus pelo livramento do convívio com extremistas que cortejam o fascismo, mal sempre à espreita, mas derrotado infinitamente.

Em tempo: este não é um texto analítico, pouco entendo de ciência política, contudo as mudanças mundiais que ora ocorrem são bem perceptíveis e preocupantes, atingem a todos e dizem respeito às nossas vidas.

Ideias também envelhecem

Gosto muito do exercício de revisitar meus antigos escritos para conferir se minhas ideias evoluíram de alguma forma. 

Escolhi dessa vez um texto de forte valor afetivo que inspirou o título da coletânea de crônicas e outras narrativas [“Viver, Simplesmente”], lançada em 2016, mimo da minha editora pelo meu ingresso na chamada terceira idade.

Trata-se de tema espinhoso – a morte – abordado bem antes de vivenciarmos uma das maiores tragédias sanitárias do planeta que dizimou mais de seis milhões de pessoas no curto espaço de dois anos, o equivalente à população todinha do estado de Goiás, sendo o Brasil o segundo país com mais mortes por Covid-19 no mundo, atrás apenas dos EUA.

Transcrevo a seguir alguns trechos:

“Viver desapegadamente para não sofrer com afastamentos ou viver intensamente e sofrer – mais intensamente ainda – com os afastamentos inevitáveis? Fiz essa pergunta dia desses para alguém bem próximo e a singeleza da resposta me surpreendeu: ‘Viver, simplesmente’.

A Tanatologia, ciência relativamente nova que estuda a nossa relação com as perdas – incluída aí a mais traumática delas, a morte –, afirma que o sentimento ou ‘luto’ causado pelo desaparecimento de um ente querido – potencializado, quando em caso de mortes prematuras – lidera a lista dos maiores sofrimentos de grande parte da humanidade. Mesmo para os que afirmam crer na eternidade da alma, a dor da perda – de um filho, por exemplo – é insuportável e, muitas vezes, insuperável.

Não me sinto imune, e também não escondo o medo, mas gostaria muito de aprender a encarar a morte da forma mais natural possível. Aceitar que tudo se acaba, que nada é para sempre”.

Tanta coisa vi e vivi nesses últimos dois anos, perdas, decepções e sofrimento. Mas descobri também solidariedade e compaixão. Assim como o corpo, a mente acumula rugas, flacidez e manchas. Envelhecer, contudo, pode ser bastante positivo, na medida em que traz maturidade e aceitação. É remoçador perceber que não sou mais a mesma pessoa de anos atrás, que adquiri novos valores e passei a enxergar o mundo sob outros prismas.

Cartas de amor

Bombardeada por notícias trágicas, busco abrigo numa história de amor que resistiu a tudo e todos com troca de cartas.

Não as cartas dos versos modernistas de Álvaro de Campos, em pessoa (com desculpas ao eterno Fernando pelo trocadilho efêmero): “Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas (…)”.

A formação rígida que se perpetuou até meados do século vinte afastou o quanto pôde dois jovens apaixonados. O rapaz protestante de origem simples não teve permissão para namorar a moça católica de tradicional família. Os dois decidiram então que o amor venceria qualquer obstáculo.

Conciliadores, descobriram uma maneira de sobreviver sem causar rupturas familiares: através da troca de cartas de amor ao longo de sete anos. Mas como fazê-las chegar ao destino?

O jovem escondia suas cartas debaixo de uma pedra, na frente da casa dela, durante o trajeto diário depois do trabalho. Ela o espreitava à janela, ao lado de um sobrinho que, mesmo criança, manteve o segredo da tia.

Dentro de cada carta ele colocava um raminho de jasmim-leite, trepadeira cultivada em todas as casas que habitaram após o almejado enlace.

A jovem, por sua vez, convencia tripulantes do Lloyd Brasileiro a postarem secretamente uma carta em cada porto, de Norte a Sul, nos cruzeiros de verão na companhia vigilante da mãe.

Quando as barreiras foram eliminadas, viveram 44 felizes anos até que a morte os separou. As cartas secretas foram enterradas com o primeiro que partiu, honrando um pacto do casal. Ela mesma as depositou na urna funerária do seu único amor.

Voltando aos versos portugueses, o sujeito lírico se redime ao fim do poema: “(…) Mas, afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas”.

Escrevi esse texto em um momento em que é preciso resgatar o amor e reimaginar um mundo melhor. Se isso é ser sonhadora e ridícula, visto a carapuça com muito orgulho.

Ia esquecendo de contar que plantei na fazenda uma muda de jasminzeiro que perfuma nossas noites sertanejas e mantém viva a memória do amor de Luiza e Joel, meus sogros.

O dia mais feliz

“Qual o dia mais feliz da sua vida?”. A pergunta vaga aparece nos minutos finais da minissérie que assisti numa plataforma de streaming nesse quase feriado momino.

Mas foi a resposta encantadora da protagonista que não me saiu da cabeça: “O meu dia mais feliz ainda não aconteceu”.

O fato de a personagem ser bastante jovem talvez explique o mundão de felicidade que a espera, mas é animador acreditar que o dia mais feliz ainda está por vir.

Na minha já extensa jornada, eu poderia listar facilmente vários mais felizes dias – e também mais tristes –, mas vou me ater a uma amostra dos primeiros.

Começo pelas férias juvenis na praia do Pecém, quando minha mãe nos incentivava a convidar duas ou três amigas. Passávamos o dia inteiro naquela imensidão branca de areia e dunas: banhos de sol e mar pela manhã, esquibunda e vôlei à tarde, e luarada ao anoitecer, com ou sem lua.

Incluo na trilha feliz a aprovação no vestibular; um universo extraordinário despontou para a menina de 17 anos que se sentiu, de repente, adulta.

A primeira colação de grau e a largada de dois corações apaixonados e entrelaçados em sonhos e aventuras, ocorridas ambas ao mesmo tempo, trouxeram alegria e exigiram mais responsabilidade.

A recompensa primeira do primeiro trabalho na área escolhida.

A emoção mais intensa que nunca acaba: o nascimento dos filhos e, décadas mais tarde, a chegada dos netos.

O dia tenso e feliz do desembarque com minhas crianças em outro país para uma prolongada estadia. Tudo o que eu aprendera até então seria desconstruído e reconsiderado. Foi como nascer de novo.

A inauguração do refúgio sertanejo em virada de ano, com nossa familinha, meus saudosos pais e mais gente querida.

As celebrações por qualquer motivo com amigos e amigas.

Os lançamentos dos meus livros que encerram longos períodos solitários de criação.

Acrescento, por fim, a partilha de conhecimento, afeto e senso de coletividade em ambientes culturais e literários que resultam, entre outras ações, na doação de pequenas bibliotecas a comunidades.

Que o nosso dia mais feliz esteja sempre por vir.

Em tempo: A quem interessar, a minissérie de dez episódios a que me referi está na Netflix e chama-se “Maid”.