Injustiça nunca mais

Na semana em que um terço da humanidade renova votos de esperança, de amor ao próximo e de justiça social, três eventos me tocaram fortemente. Trata-se de episódios distintos que guardam relação entre si por refletirem a dor maior da injustiça.

O primeiro foi o aniversário de 59 anos do golpe militar de 1964, cujos desdobramentos marcaram de maneira indelével toda a sociedade brasileira, temática que abordo no romance “O segredo da boneca russa”, inspirada no período sombrio que durou mais de duas décadas. Para alívio de milhões de brasileiros, as Forças Armadas proibiram neste ano celebrações festivas do golpe. Comemorar torturas, estupros e assassinatos de estudantes e ativistas políticos é desumano.

O segundo evento é de cortar o coração na semana sagrada dos cristãos: a retirada das barracas dos moradores de rua na cidade brasileira mais rica sem que houvesse uma solução efetiva para a situação indigna. Essas pessoas precisam de moradia de verdade, não de abrigo.

É revoltante que qualquer defesa que se faça aos mais vulneráveis seja rebatida de modo maldoso e debochado: “Pegue a sua casa e a divida com os pobres!”. Parece que o tempo não passou desde os primórdios da era cristã. 

Li estarrecida no perfil das redes sociais do Padre Júlio Lancellotti, 74 anos, um defensor obstinado dos excluídos, comentários do tipo: “Padre comunista, tá com pena, leva pra casa!”; “Abra as portas das igrejas pra esse pessoal dormir e pare de encher o saco”; “Militante esquerdopata”. Felizmente a maioria o apoia e se sensibiliza com a sua missão na Pastoral do Povo de Rua, em São Paulo.

O terceiro evento é de uma crueldade sem medida, porque envolve quatro criancinhas assassinadas a machadadas por um homem esculpido no ódio.

Diante desses relatos, como pensar em Feliz Páscoa? Se o grande líder espiritual de um terço da humanidade voltasse ao mundo, estou convicta de que seria visto pelas calçadas das metrópoles cuidando e defendendo os desprezados pela sociedade, lutando contra a tirania e espalhando o amor. Para renovarmos a esperança é necessário primeiro combatermos toda forma de desumanização e injustiça.

Ilustração compartilhada do perfil do artista espanhol @agustin.delatorre.zarazaga

@padrejulio.lancellotti

Minhas avós

Sou herdeira de mulheres que marcharam sobre solos trincados e silenciaram os próprios gritos.

Enquanto minhas avós pariam em casa o primeiro dos sete, oito filhos, milhares de contemporâneas do outro lado do planeta agrupavam-se em protestos contra as péssimas condições de trabalho nas fábricas, jornada diária superior a dezesseis horas, inclusive aos domingos.

Ambas de prenome Maria, minhas “privilegiadas” avós – pois brancas e possuidoras de algum torrão nesse mundo chamado Ceará – nasceram e viveram em vilarejos rurais. O cuidar rotineiro dos muitos filhos, do marido e da casa não era menos extenuante que o das operárias estadunidenses, alemãs e russas.

Minhas avós não foram à escola, mas assentaram filhos e filhas nas carteiras do grupo escolar da comunidade, tendo sido minha mãe a que voou mais alto: formou-se professora na capital para orgulho da família. Elegeu o lado profissional, retardando matrimônio e maternidade; casou-se aos 36, foi mãe aos 38 e repetiu a façanha aos quarenta.

As mudanças entre as gerações das minhas avós e da minha mãe podem ser atestadas desde o parto: minha irmã e eu viemos ao mundo em hospitais e um pediatra acompanhou o nosso crescimento. Nossa formação intelectual e autossuficiência eram prioridade para a nossa mãe, como se quisesse vingar toda a ancestralidade. Minha irmã graduou-se médica e eu pedagoga e jornalista.

No rastro do inconformismo, migrei temporariamente para outros países, abraçada aos filhos ainda crianças, onde espantei-me com manifestações de todo tipo. Uma delas, em um 8 de março, evocava a morte de mais de cem operárias nova-iorquinas após serem trancadas na fábrica e queimadas pelos patrões – com a cumplicidade das leis –, por reivindicarem melhores condições de trabalho.

Cerca de duas décadas mais tarde, minha peregrinação levou-me a outro março histórico. Eu me encontrava em Paris para o Salão do Livro, quando fui surpreendida por um protesto que rebatizava simbolicamente as ruas do centro da cidade com nomes de bravas mulheres que foram caladas por suas resistências e ativismos. Cartazes cobriam as placas originais que homenageiam predominantemente homens; em um deles lia-se o nome da vereadora brasileira Marielle Franco, assassinada aos 38 anos no Rio de Janeiro.

Mais de cem anos depois das primeiras manifestações feministas, novos conceitos sociais, culturais e biológicos vieram fortalecer a causa, mas os desafios persistem. Precisamos entender que o feminismo é uma bandeira coletiva. Nos crimes contra a mulher, o Brasil contabiliza diariamente quatro mortes por feminicídio e cerca de mil violações envolvendo violência doméstica, além de um estupro a cada dez minutos, conforme dados oficiais recentes.

Guardo profundo respeito aos meus vínculos femininos. Minhas avós manifestaram-se em sua época como puderam: cuidaram do seu chão e alimentaram seus filhos com comida e livros. Seus restos mortais repousam no mesmo solo em que marcharam amordaçadas e invisíveis. Minha mãe foi firme até o fim, apesar da perda trágica da sua amada filha que brilhou na medicina até ladrilhar a eternidade. Quanto a mim, bem, resisto aqui na peleja das minhas escrituras.

Neste Dia Internacional da Mulher, mil “Vivas!” às avós Maria, às mães Clélia e às irmãs Thereza, grandes exemplos feministas para todo o sempre, em todos os marços e nos outros meses também. Que a descendência siga louvando a todas elas.

*Crédito foto: YOAN VALAT / EFE – 08/03/2019

Incivilizados

“Meu nome é Martim (…); meu sangue, o do grande povo que primeiro viu as terras de tua pátria.” (José de Alencar, em “Iracema”)

O meu primeiro contato com a nossa gente originária foi através da literatura. Era tempo de colégio, adolescência e leitura obrigatória dos clássicos locais.

Os livros didáticos de História continham informações reduzidas e estereotipadas sobre os povos indígenas, indiferentes às vivências de cada um. Em “Iracema”, do brilhante romancista cearense José de Alencar, eles tinham nome, voz, rosto e sentimentos.

A linguagem lírica da obra, contudo, não me encantou à época. Faltou-me maturidade, além de conhecimento prévio a respeito das diversas etnias, suas leis, verdades e costumes. Talvez um debate na escola quanto à importância e respeito à ancestralidade tivesse ajudado. Até então, os índios eram considerados seres exóticos e incivilizados.

Relembro esses fatos no momento em que uma crise humanitária sem precedentes se abate sobre o povo Yanomami e observo, com vergonha, tristeza e revolta, que preconceitos de séculos ainda perduram.

Nas redes sociais, leio estarrecida comentários desinformados, cruéis, debochados e insensíveis: “Índios fugindo da Venezuela para escapar aqui”; “Infância desamparada à base de mandioca, feijão, verduras e peixe”; “Pais indígenas não sabem mais caçar, pescar, plantar?”; “Os índios não querem mais plantar?”.

Se não podemos – ou não queremos – socorrê-los, tenhamos ao menos compaixão das crianças Yanomami esquálidas, com a idade de nossos filhos e netos bem-nutridos. E pressionemos para que a Justiça puna os principais responsáveis (porque somos todos) pelo que está sendo classificado de genocídio.

Iracema, a índia Tabajara que teve o infortúnio de se apaixonar pelo invasor branco europeu, ao atingir Martim com uma flecha quebrou a haste e entregou-lhe em sinal de paz.

Na citação que abre este texto, o próprio Martim admite ao pajé Araquém, pai de Iracema, que a pátria invadida pertence aos indígenas.

Já passou da hora de quebrarmos a flecha à maneira indígena e estabelecermos a paz. Os inimigos não são eles; os incivilizados somos nós.

Zerar a vida

Com alegria e gratidão, comunico aos queridos e queridas que seguraram a minha mão nesses últimos anos, que eu zerei a vida neste início de 2023. Não é pouca coisa. Com que frequência se alcança algo que tanto se almeja? Aposto que raramente.

Optei por escrever um texto motivacional porque é de esperança que estamos famintos e sedentos após um longo período de perdas e “desmantelos” – termo copiado da minha saudosa mãe –, atrelado a um pacote de crises profundas: sanitária, educacional, cultural, ambiental, humanitária, econômica etc.

A exemplo da maioria, eu estava desnorteada e apavorada com o ressurgimento do autoritarismo e de forças extremamente conservadoras que julgávamos banidas desde o século passado, embora estudiosos insistam que o monstro jamais é eliminado, ele apenas hiberna à espera do degelo da vigília.

Essa virada de ano foi muito significativa não só para nós, brasileiros, mas para todos os povos contemporâneos. Saudamos a retomada da democracia, da sensatez, do humanismo, do cuidado com os mais vulneráveis, os mais necessitados, os invisíveis, os excluídos, enfim, todos aqueles que os verdadeiros líderes – espirituais e políticos – acolhem desde que o mundo é mundo.

Na troca do calendário, meus olhos úmidos visualizaram os desvalidos de “Vidas Secas”, do gigante e eterno Graça, ascendendo suave e firmemente a rampa presidencial desenhada um dia por Niemeyer. Aquela imagem de homens e mulheres, mais a criança e a cadelinha, personagens reais que sabem que para lutar e vencer é preciso primeiro sobreviver, foi a representação mais intensa e emocionante já vista na minha longa existência. Orgulho da nossa gente que deu lição de cidadania para o mundo.

Sigamos vigilantes. Não nos deixemos corromper pela desinformação, só o jornalismo profissional, livre e independente pode combater as mentiras criminosamente plantadas nas redes sociais e que tanto enfraquecem a democracia e prejudicam os cidadãos. Junte-se o equilíbrio dos três Poderes políticos fortes e teremos criado o antídoto à tirania.

Acredito que o desejo coletivo para o novo ciclo é contribuir para um mundo menos desigual. Isso é zerar a vida.

Modo esperança ativado

Neste último mês do ano venho propor um exercício de esperança, esse sentimento que se alimenta da nossa teimosia e resistência.

Considero o atual momento uma transição para uma era mais humanista, e só em imaginar isso sinto-me mais leve e confiante.

Listei portanto dez cenários que me tornam feliz, todos eles passageiros, uns mais que outros. Afinal, se a felicidade fosse algo permanente ninguém saberia reconhecê-la, não é mesmo?

Identificar o que nos faz bem é ativar as nossas expectativas para tempos melhores.

Então, vamos ao que me deixa em estado de graça:

1. Um abraço caloroso;

2. A cura de um ser, humano ou não;

3. O verde mar que beira as caminhadas das manhãs;

4. O bem-te-vi que toda tarde vem se despedir;

5. O fogão semanal partilhado com meus queridos;

6. Uma viagem com meu parceiro de vida para qualquer distância;

7. O “bom dia!” trocado pelas calçadas anônimas do bairro;

8. As vozes do campo enquanto silencio;

9. As conquistas femininas e de outros grupos minoritários, em todas as áreas, que resultam em mais inclusão, diversidade e representação social;

10. O canto dos nordestinos Belchior, Alceu, Almério, Bethânia, Gal, Gil e Caetano, e do neto de pernambucano, Chico.

Agora, que tal listar as suas felicidades? Vamos desativar o desumano que nos habita e esperançar juntos. Feliz nova era!

O quinto filho

Acabo de parir mais um filho, o quinto em uma década.

Batizei-o de Bodum.

Referir-se a livros como filhos é uma analogia frequente e um exercício abundante de afeto e entrega.

A gente planeja a gestação, enfrenta suas dores e delícias, até segurar o rebento junto ao peito, sem entender ainda direito como o concebeu. Confere se está tudo no lugar, orelhinhas, carinha, corpinho. Descobre algumas imperfeições que não impedem de amá-lo do mesmo jeito.

No começo, eles grudam debaixo das nossas asas, a pedirem colo; depois voam sozinhos, ganham o mundo, deixam de ser nossos, sinal de que cumprimos a missão direitinho.

A única diferença é que a gestação literária, ao contrário da biológica, não tem duração certa, pode levar de poucos meses a alguns anos. Após o nascimento, contudo, reagem de forma semelhante: dão trabalho, alegria e preocupação.

Há um ano e meio dou vida e voz a duas personagens nordestinas – Bia e Gia – nascidas no interior e descendentes dos povos originários brasileiros.

Bia e Gia se conhecem em uma das capitais da região e se tornam grandes amigas. Após algum tempo, Bia migra para o Sudeste em busca de novas oportunidades. As jovens perdem totalmente o contato. Anos mais tarde, Gia, que permanecera no Nordeste, tem um presságio sobre a morte trágica da amiga. Ela retorna, pela primeira vez, ao interior para tentar descobrir alguma pista do paradeiro da amiga, em uma viagem que representará o resgate das suas próprias raízes.

Para gestar Bodum, inspirei-me nos consagrados romances realistas regionais do século vinte e na contação de histórias da minha mãe e do meu pai sobre sua infância e juventude longe da urbanidade.

O “chá de apresentação” do meu bebê será neste novembro, na Bienal Internacional do Livro do Ceará, no Centro de Eventos, em Fortaleza, em data a ser brevemente confirmada pela Editora Sete. Aguardo todos e todas.

Seja muito bem-vindo, filhote! Que você possa trazer alguma luz para a gente sofrida e invisibilizada do Nordeste.

Capa: Geraldo Jesuino

Achados e Perdidos Afetivos

Uma arma na cintura

do menino que devia tá segurando a bola

Uma pistola na bermuda

do menino que devia estar na escola

Um menino

Um moleque

Um inocente amadurecido

Pela dor das perdas

Pela a cor da pele

Pela o abismo social

O vazio 

O medo

E a arma no cós

da bermuda de marca

A arma que marca

A arma na cara

A arma ameaça

A arma mata

Mata o moleque

Que ainda vivo

Se escraviza

dos sonhos

dos planos

da vida

A arma na cintura

a pergunta:

O que é isso na cintura menino?

O menino desconcertado

O menino esquecido

O menino sozinho

Um perigo!

A arma tira vida

Mas, antes

Bem antes

Mata sonhos

Mata coragem

Mata o amor

Mata amizade

Arma mata

Livros libertam

Arma mata

Amor salva

Arma mata

Então,

que a arte 

nos seja a arma do amor

onde estivermos

E que o universo

Nos salve de nós

Tão Triste

É tão triste olhar nossa gente,

e ver tanta dor

É tão triste ver da cintura 

a arma

Sentir no coração o amargor

É triste andar na cidade

Com medo do irmão

É triste ser gente sozinha

na multidão

O que queremos nós

do nosso futuro

se o menino tá hoje com a arma na mão

Qual é meu irmão?

Somos tudo gente

Eu como tu quero viver

Já não nos cabe só sobreviver

Concordo contigo

Mas não coloca em perigo 

tua alma

teu irmão

Não coloca pro menino

a responsa,

meu irmão

Nem a polícia, nem o ladrão

Ele véi,

é só um menino

nem tem noção

do risco 

de tá ali com a arma na mão

Não esqueci o que vi

Já vi antes

Mas, não ali

Já vi antes

E quantos já perdi?

E tu, já perdeu alguém pra bala?

E pra esta máfia 

Essa milícia

O desgoverno que assistimos

Que coloca arma na mão de menino

Que faz dele bandido

com arma e sem educação.

Que país é esse?

Eu quero o Brasil

O que é nosso

O que é lindo

O que se ama e se respeita 

com tudo que se tem e é

E se for utopia

Não me diga

Preciso dela para viver.

Erráticos por Fortal City

Por Roberta Bonfim

Ontem fui encontrar com a multiartista Michele Tajra para pegar meus kits lindos de existir com sabonetes, óleos e cremes da Alquimia. Maravilhas naturais feitas pelas mãos desta bruxa encantada. Enquanto esperava, fiquei olhando para o São Pedro. Pensei em tanto que nem caberia em palavras escritas. Mas, no fim pensei na relevância do prédio para cidade e emocionei-me por vê-lo tão abandonado, pois de algum modo aquele lugar sou eu. Nele vivi algumas das minhas melhores memórias infantis, nele fui crescendo, ele sempre foi meu porto seguro, a casa da Vó, a casa de todes nós. E as redes se espalharam no extenso corredor. Quando eu nasci, há quarenta anos atrás ele já estava em processo de decadência. E eu amava estar ali, as escadas estreitas, os portais, o elevador, o piso. Eu amava o piso, os cobogós. Depois com o tempo foi ficando mais perigoso, e o edifício foi ganhando portões, e como é dividido desde sua origem, os públicos que ali moravam também eram os mais diversos.

O fato é que eu olhava o São Pedro e isso mexeu comigo de algum modo, me afetou, fiz umas fotos, sentei e fiquei olhando-o. Vendo uns moleques lá em cima. Tenho muita vontade de subir, mas tenho medo de algo que nem sei ao certo o que poderia ser, talvez ainda o medo das histórias sombrias que nos impedia de subir ainda na infância. Lembro que no terceiro ou quarto andar havia uma corrente para nos impedir acesso. Olho-o, e também a igreja de São Pedro, cenários permanentes na minha vida e lugar onde batizei minha filha e meu afilhado. Olho as tabajaras e também a calçada do outro lado. Olho tudo e busco os reconhecimentos. Eu sou parte desse lugar e ele de mim. Michele chega e descemos para a praia para ver o avermelhado do céu, falando sobre a cidade, o morar-se. Eu me descobri morando em mim faz tempo e amo quando encontro gente assim, que reside em si. 

Uma passada em casa, a demora com a chegada do uber, uma conversa na portaria com uma vizinha sobre a Síria, e as tantas narrativas que nos rodeiam. Qual o papel dos Sírios e Turcos para a formação da cidade Fortaleza? E como chegaram também ao Piauí? Você aprendeu sobre isso na escola? Eu também não. Você sabia dessa forte relação para além da deliciosa cachaça Líbanos, que ontem foi positivamente citada pelos artistas Thiago Arrais e Ricardo Guilherme, com quem encontrei no show que é a razão primeira deste texto. 

O show Errático, do poeta, cancioneiro, citadino, Daniel Medina. Acho legal a coisa de tirar o ingresso pelo sympla, mas sinto ausência do momento da fila na bilheteria do teatro, aquele momento em que encontramos os amigos e conhecidos, falamos sobre a expectativa do que será assistido. 

Corta, edita, estou eu em ótimas companhias cruzando aquele corredor do Teatro do Dragão do Mar –  já citado em outros textos.Foi lindo entrar e dar de cara com o artista ali no centro do palco rodeado por objetos sonoros, pedais, vilão, caixa de retorno, pedestal. E ele, Daniel Medina todo de preto e um sutil e representativo lenço vermelho no pescoço e sua guitarra como fiel e fundamental companheira no show, apesar de desafinar mais que violão como cita Medina em dado momento do show que começa suave e intenso. Aqui não sei se essa profundidade alcança a todes, ou se é algo particular, ou ainda pelo fato de por alguma razão nunca compreendida sentamos na primeira fileira do teatro, o que me permitiu ver até o escorrer da gota de suor no rosto do artista. E quando ele tocou, Cantar Vitória, eu fui afetada a primeira vez e cantei baixinho as partes da letra que eu sabia. 

Já assisti outros shows de Medina e sempre sou fisgada algumas vezes, assim, logo vieram outras fortes emoções, como Boi Cidade e Lágrima de Índio. O show vai em crescente e o ArteVista coloca seu corpo como instrumento de utilização da arte, é lindo, e teve até espaço para homenagens e oferecimentos. – Link para texto de lançamento do album Evoé – Daniel Medina – youtube Evoé completo

 Uma das grandezas de Medina é a disponibilidade, sua existência poética e criativa. E sua coragem! Eu tenho muita admiração por quem sustenta o centro do palco com maestria como Medina o faz em toda sua performance. Tá! Toda não. Há um momento em que ele fecha o show, sem fechar para que a gente peça para ele voltar, que é completamente dispensável ao meu ver, pois perde algo, enfim. Sensações que também podem ter me vindo pela proximidade com o palco, lembro que estávamos na primeira fileira, eu já quase deitada na cadeira. A parte a isso foi linda, potente, necessária, imenso. E aqui assumo que senti saudades de ter ao lado minha grande parceira de show de Medina Isabelle Vieira. 

O artista, logo de princípio, registrou a ausência penosa e absolutamente justificada de seu parceiro neste show. Peço perdão pois não lembro o nome. Como também não me recordo que estava responsável pela luz, mas o som quem arrasou junto foi Milton, conversei com ele no papo lindo com a banda Danchá, no Serviluz,  outras pérolas da cidade de Fortaleza. 

Daniel Medina faz e compartilha conosco uma música repleta de relação com a cidade de Fortaleza, identidade, pertencimento, memórias coletivas e nos convida incansavelmente para seguirmos juntes, apesar dos perigos, pois estamos vivos. E aqui eu tenho aquela sensação de que este show merecia estar lotado. E porque não está? E como nós da cidade não conhecemos e damos o carinho merecido a este multiartista? E aqui podemos apontar diversas questões. Bem, como diversas outras competências locais. 

Medina em alguns momentos do show agradeceu ao espaço e a equipe do Centro Cultural Dragão do Mar, e são merecidíssimos reconhecimentos e agradecimentos. Enquanto ele falava eu fui trazendo à mente essas memórias, do Centro cultural sendo construído, a mudança da paisagem da minha montanha russa, pois eu sentia aquele friozinho na barriga sempre que o ônibus descia ali. 

Lembrei-me da primeira exposição de artes plásticas que vi na vida, e no Centro Cultural Dragão do Mar e tanto mais ali vivi, espetáculos, shows e festivais vistos e/ou vividos como público, produção e/ou comunicação. E tantas outras lembranças fundamentais. O show acabou e eu estava em completa ebulição como acontece quando assisto coisas que minha alma entende como fundamentais. Após os aplausos corri pro banheiro e ao sair percebi que minhas companhias estavam todas dentro do teatro, meio encabulada voltei. O que foi ótimo porque pude ganhar um abraço adrenalizado e pleno de Medina e ali quero crer que consegui dizer a ele o quanto admiro e respeito essa lindeza toda que ele nos apresenta. 

Eu já estava com as emoções bem bagunçadas, aí veio o bom abraço e o impacto de sair do teatro. E sai explodindo, louca para viver a minha sexta livre, para tomar uma cerveja gelada e sorrir, dançar e passear por Fortaleza. Mas, assumo que ao sair do teatro o som altíssimo do bar que antes fora antes uma pizzaria. A percepção de um lado inteiro fechado e “interditado”, ao lado do bar barulhento, outro bar não menos barulhento competem a atenção de quem passa. Muitas barraquinhas de bebidas, boates ao redor, não as conheço hoje, mas já fui muito vivente desse lugar desde o Domínio Público, passando por Docas, Acervo Imaginário,Órbita e mais um tanto. E outros teatros e galerias que existiam por ali, como o Teatro das Marias, Teatro da Praia, Boca Rica e muitos, muitos, moradores de rua e pedintes, dos mais diversos tipos, de ex presidiários que não querem voltar para o crime com narram um expectativa de mudança de vida, a gente bem entregue ao crack, também conhecida com lepra da modernidade. 

Eu ainda, na tentativa desesperada, de me sentir no Dragão do Mar externo que eu conhecia, convoquei as companhias e fomos ao antigo bar do Avião, que agora tem outro nome, a cerveja estava quente e onde fomos atendidas por adolescentes super simpáticas, que em um primeiro momento penso que que não deveriam estar ali, por outro lado porque não deveriam se ali é o centro de arte e cultura da cidade, o maior da América Latina. Por outro lado nós fumamos e tomamos cerveja ali, e assim elas estavam vendendo bebida alcoólica. Ai talvez a chave da questão. Que é também de algum modo hipocrisia estruturada da minha parte, pois aos 16 anos eu já tinha tomado uns bons porres com a turma da escola na garagem do condomínio.  

Mas, o fato é que na área externa, me senti numa Lapinha de fim de noite (Bairro boêmio do Rio de Janeiro), mas ali ainda devia ser por volta de 21 horas e já havia uma densidade no ar.  O fato é que a casadinha muito prazerosa de assistir um filme ou teatro e na sequência sentar para comer, ou tomar um chopp, hoje tá na casa do impossível no Dragão do Mar se o desejo for algo mais tranquilo, como uma simples pizza de domingo. 

E aqui precisamos falar de acesso e iluminação para chegarmos ao centro cultural, mas vou deixar para outro texto. Ainda ali conversando com gente querida e olhando o ambiente, mudo a posição da minha cadeira umas vezes para conversar paralelamente com pessoas e neste movimento me remeto a dança das cadeiras da decadência. Lembro bem de uma ‘época em que a Praia de Iracema era tomada com barzinhos com música boa, o fortalezense que andava na PI era criado ali no anos 90 com o melhor da música popular brasileira cantada por nomes ainda presentes no cenário com Robston, Paulo Façanha, Davi Duarte, Junior Colere e outros. A orla da Praia de Iracema era a grande pedida, a Beira Mar tava tomada pela prostituição e o Dragão do Mar era construido. Depois fomos todes ao Dragão e o turismo sexual tomou para si a Praia de Iracema. A Beira Mar passou por várias reformas e hoje tá um luxo, parece Miami, mas já não parece a minha Fortaleza, o que me salva ali na memória afetiva, são as quadradas. 

E faz um tempo que assisto um movimento de reforma e reestruturação, da Praia de Iracema, a partir dos afetos e do pertencimento, e assim vão surgindo lugares interessantes. Mas, por qualquer razão que eu em absoluto consigo entender, não criam as conexões, possibilitando a população fazer uso dos espaços públicos incríveis que a cidade tem. O mesmo vale para a parte de cima. Lembro que moro bem perto do centro cultural e me vejo pelo inóspito caminho sendo obrigada a ir de uber ou carro. E é urgente pensar estratégias para melhor seu ambiente externo, encontrar modos participativos, trazer a Comunidade do Poço da Draga para dentro, como caminho de pertencimento. E a cabeça começa a ferver, ali mesmo.

Para minha sorte, felizmente fomos chamados a ir a um Forró do MST, onde também rolam feiras de orgânico. Lá estava bem lotado e jovem, então seguimos para mais algumas paradas no decorrer da noite que foi muito ótima e fechou com samba, onde tocava o carismático Pedro Ernesto e ainda pude abraçar apertado o inspirado Yargo e sambar até a sola do pé arder. Grata a todes envolvides e até o próximo vale!

Dois anos de artevismo

Bem no comecinho da pandemia que ainda nos assombra, recebi um convite para abraçar um Lugar que respira cultura, afeto, arte, talento e coragem.

À época, minha família – como tantas – passava por uma tempestade que culminou na perda da minha única irmã para a Covid-19, o que me levou a adiar o “Sim”.

Meses mais tarde, em ato de resistência, publiquei o primeiro texto mensal. Hoje trago o vigésimo quarto, uma comprovação de que vida é energia e partilha.

Nesses dois anos, dividi com queridos leitores e leitoras minhas angústias e regalos. Tento provocar alguma reflexão e alertar para a importância de aprender a lidar com o sofrimento. A temática varia conforme o momento: ora triste, inconformada e revoltada; Ora alegre, resignada e paciente.

Já escrevi sobre as pequenas inutilidades que nos sustentam; Que devemos encarar os desafios com seriedade; Da obrigação de respeitar pensamentos divergentes; De recomeçar, apesar dos infortúnios; Sonhar o impossível; O direito de manter a casa em desordem; Que a luta feminista gera um mundo mais justo; De cuidar de quem padece; Não negar a própria dor, mas sim evoluir a partir dela; Valentia para desistir do que não faz mais sentido; Participar de algo que beneficie a coletividade; Entregar-se a memórias leves quando o presente estiver muito pesado; Julgar menos é sinal de maturidade; Insistir na esperança ativa; Aproveitar as boas surpresas; Priorizar-se nem sempre é egoísmo, é preciso fortalecer-se para amparar o outro; Praticar o desapego faz um bem enorme, uno e plural; Esperançar de novo e sempre porque o dia mais potente – e feliz – ainda virá; Inspirar-se na força do amor; Aceitar o envelhecimento é florescer; Do perigo de conviver apenas entre iguais; E que as mudanças são necessárias e inevitáveis.

Renovo hoje votos de amizade e gratidão com o nosso ArteVistas pela oportunidade de falar livremente acerca das minhas próprias vivências, e torço que elas possam ser úteis a alguém.

Ainda há caquinhos espalhados, o mosaico não está completo e nem sei se estará um dia. De certeza mesmo, só o desejo de seguir, de cultivar o riso e o convívio.

Meu tempo é agora

Junho mal acabou e já estou com saudade das quadrilhas, milho assado, canjica e pé de moleque.

Saudosa, não saudosista! Cultivo o desapego ao ontem. Prefiro o mundo contemporâneo, com suas modernas ferramentas tecnológicas e avanços científicos que nos facilitam a vida, curam doenças graves e chacoalham convicções.

Por outro lado, semeio memórias de risos, afetos, objetos, lugares e sabores, enquanto acolho os costumes ancestrais com seu linguajar e manifestações próprias, sem rejeitar as inevitáveis mutações.

As quadrilhas juninas são unanimidade como tradição a ser mantida, embora muitos torçam o nariz conservador para as recentes variações. E se eu disser que essa dança, como tudo na vida, está em constante evolução? A quadrilha da nossa saudosa infância era uma releitura da releitura, capaz de fazer eriçar os fios brancos das cabeleiras postiças dos fidalgos europeus de três séculos atrás.

Importamos uma dança aristocrática francesa para os salões monárquicos brasileiros que, na sequência, espalhou-se para a zona da mata, agreste e sertão nordestinos, associada à colheita e aos santos católicos de junho. Uma transformação que prossegue porque cultura é como linguagem, algo vivo que acompanha as mudanças sociais. Uma comprovação prática? Ninguém mais fala “vossa mercê”. Nem a nobreza masculina europeia usa mais peruca branca com cachos.

Temos, obviamente, que zelar os hábitos locais e a norma culta da linguagem quando a esfera e o contexto assim exigirem. Nas redes e mídias sociais, destino deste escrito, posso [e devo] espalhar pitadas de descontração. Nos aplicativos de mensagens instantâneas – como “Whatsapp” ou “zap” –, as abreviações e “emojis” dão o tom. No Jornalismo, minha área, utilizamos linguagem mais formal. Enfim, expressar-se com maior ou menor (in)formalidade vai depender do suporte, do meio e da profissão.

Adaptamos o figurino da “quadrille” original e renomeamos os movimentos “En avant tous!” | “En arrière!” para “Anavantu!” | “Anarriê!”, somados aos regionais “Olha a cobra!”, “Olha a chuva!”, “Caminho da roça!”, e outros abalos que ainda virão.

Vivam as mudanças! Um “Salve!” à cultura popular.